sábado, 4 de outubro de 2008

A Doce Vida - Clássico atemporal de Fellini


Cineastas como Federico Fellini normalmente são mal interpretados. Por trás da lentidão das histórias contadas, das alegorias, da possível incompreensão ao que se vê na tela, esconde-se uma forte denúncia aos valores da sociedade moderna. Estes valores, que na década de 60 já eram fortes, pouco mudaram quase meio século depois.

A Doce Vida (La Dolce Vita, Itália, 1960), talvez a obra máxima do italiano, engana muita gente. Aparentemente um filme ingênuo sobre a vida das celebridades de Roma, a película é uma crítica fortíssima a todo o vazio e à frivolidade da burguesia. E o melhor: Fellini nos mostra isso de maneira sutil, sem escancarar o óbvio, o que o faz ser ainda mais feroz.

A história não possui um fio condutor. Acompanhamos alguns dias na vida de Marcello, jornalista que escreve para as colunas sociais e perambula pelas noites acompanhando a alta classe. O protagonista, interpretado pelo ator fetiche de Fellini, Marcelo Mastroianni, sabe que algo está errado com o que vê todas as noites. Festas suntuosas, jantares caríssimos, mulheres ardentes, não escondem o quão pobre e hedonista é a vida dos ricos. Apesar de viver tão próximo a um mundo de sonho e luxúria - ele dorme com belas mulheres, conhece as mais influentes pessoas – Marcello não entende o que se passa ao seu redor. De forma inconsciente, a angústia passa a ser um fator freqüente em sua vida.

A forma como Fellini mostra esta burguesia “acéfala” é a maior marca de sua filmografia. De forma alegórica, que muitas vezes beira o surreal, ele brinca com o espectador e o sentimento que é despertado em nós é o mesmo do protagonista: não entendemos o que se passa, sabemos que algo está fora de controle, mas não conseguimos verbalizá-lo. Os diálogos são tão irreais quanto as imagens e só reforçam a futilidade das ações que vemos na tela.

Um dos poucos fatores que aliviam Marcello é a amizade com Steiner (Alain Cony). Este é uma espécie de ídolo para o jornalista: rico, inteligente, uma espécie de filósofo sobre a vida, sabe se manter distante de toda a ilusão que a riqueza pode provocar. Quando algo trágico ocorre ao empresário, somos levados a um final que não esperamos. Uma tour-de-force pesada e melancólica, que, de certa forma destrói toda a esperança que possa existir para a sociedade retratada – que no fundo, é a nossa sociedade. Se os lúcidos abrem mão de sua lucidez, o que mais resta a fazer? Somente aproveitar a doce vida.

Apesar de possuir inúmeras passagens marcantes, como o banho na Fontana di Trevi, duas cenas resumem a obra: o plano de abertura e de fechamento do filme. Marcello tenta falar com uma mulher, mas não consegue ser ouvido, muito menos ouvi-la. Em um mundo onde não conseguimos nos comunicar, onde nossas atitudes são motivadas em sua maior parte pelo comodismo, o melhor talvez seja se entregar a algo que não conseguimos mudar.

Um comentário:

Fernando A. Medeiros disse...

Comentário brilhante. E me parece que Fellini escapa, em La Dolce Vita, do estilo circense que ele adotara em 'La Nave Va'? Sem sombras de dúvida, ele é um diretor ímpar.

Tu vai me emprestar o filmão, né? E digo que sua resenha está impecável, exceto em um errinho de digitação com a palavra "melancólica" que segue "tour-de-force". De resto, a Academia faz clap-clap-clap (aplausos) e a Folha de São Paulo considera ***** (five stars).